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Foto do escritorMarcelo Naudi

Música e estética: canção e música instrumental



Há na linguagem musical, aspectos óbvios que não são suficientemente ressaltados em análises e comentários. Um deles é o fato de que a estrutura de uma canção difere – e muito – da de uma música instrumental.


Na música erudita, a tradição musical ocidental foi predominantemente vocal até o início do Barroco: desde sua origem no Médio Oriente, passando pela Antiguidade Clássica, Canto Gregoriano e chegar ao auge do contraponto no Renascimento, temos uma tradição predominantemente vocal baseada, sobretudo, em textos sacros.


Mesmo no Barroco, quando fugas, suítes e concertos instrumentais começam a surgir, temos, em contrapartida, o nascimento da ópera, forma teatral vocal baseada em textos profanos que terá um enorme desenvolvimento nos séculos XVII e XIX.


As formas instrumentais eruditas passam a predominar decisivamente apenas a partir do final do Classicismo e começo do Romantismo – era das sinfonias, sonatas e quartetos de corda -, mas, mesmo nesse período do nascimento da chamada “música absoluta”, ainda serão fortes a ópera, a música coral e o lied ou canção romântica para voz e piano ou voz e orquestra, formas bastante cultivadas também no século XX.


Embora a estrutura tema-improviso do jazz seja, em sua essência, instrumental, a canção tem, também aqui, uma importância enorme: desde a “Era do Rádio”, cantores aliaram-se a improvisadores, arranjadores e big bands. Nomes tais como Ella Fitzgerald, Sarah Valga e Billie Holliday mostram a fecundidade dessa fusão.


O mundo da MPB, do rock e do pop é, por seu turno, predominantemente um mundo de canções. Há derivações instrumentais – como choros e fusions – e tais derivações acabam por utilizar-se tanto de formas escritas oriundas da música erudita (sobretudo nos arranjos), quanto do conceito jazzístico de improvisação. De qualquer forma, a canção encontra – seja em português ou inglês, seja derivada do blues ou do samba, um espaço próprio para sua manifestação autônoma nessas matrizes estéticas. Assim, temos:


A canção faz parte de um mundo próprio que não pode ser reduzido ao da música instrumental.


A canção não é apenas uma música instrumental com letra.


A letra de uma canção nem sempre é um poema com real interesse literário.


Perguntamos: qual a essência da canção?


Podemos dizer que, nas canções, a presença do texto determina, de certo modo, tanto a forma quanto a harmonia, tanto o tipo de melodia quanto o arranjo, tanto o tipo de trabalho instrumental quanto a interpretação. Isso é ainda mais forte em certos tipos de canções, as que podem ser chamadas de “figurativas”.


Nós, brasileiros, temos um grande teórico e cientista de canção popular: trata-se do compositor e professor Luiz Tatit, autor de análises, livros e teses sobre o tema. Para ele, uma das técnicas que permite a eficácia retórica da canção consiste na aproximação entre a melodia e a entonação da fala cotidiana, recurso explorado por muitos compositores, tanto do universo da MPB quanto do mundo pop. Esse canto-falado é o que ele chama – partindo de categoria semióticas – de “persuasão figurativa”.


Um outro tipo de canção, chamado por Tatit de “persuasão passional”, explora a emotividade a partir de relações do texto com curvas melódicas e tensões harmônicas.


Um terceiro tipo, denominado às vezes “persuasão decantatória”, configura, para o professor e músico, temas instrumentais que afastam propositalmente a melodia da fala, dando muita ênfase para o ritmo.


Seria temerário querer expor em poucas palavras os profundos estudos de Luiz Tatit a canção popular. Nós os mencionamos apenas para mostrar que uma canção tem seus próprios recursos e leis, nem sempre passíveis de uma redução às categorias dominantes da literatura ou da música instrumental.


Compor uma canção não é fácil: como arte híbrida da palavra e do som, ela somente será bem-sucedida se todos os elementos estiverem concorrendo para gerar significado. A letra, numa canção, não pode ser retirada sem que o todo se modifique.


Certa vez, um regente paulista comentou a suposta “pobreza” de uma melodia repetitiva de Chico Buarque: ora, a canção em questão, Cotidiano (“todo dia ela faz tudo sempre igual, etc.”) fala sobre os condicionamentos do dia-a-dia, sobre a rotina na vida de um trabalhador de classe média. Será que a música ganharia esteticamente com modulações, harmonias radicais e improvisos virtuosísticos?


Quando tiramos a letra e transformamos a canção em música instrumental, temos de compensar a perda com o desenvolvimento de formas instrumentais típicas, como a escrita artesanal erudita, o swing ou a improvisação jazzística. Essa é, por exemplo, a proposta do trabalho de improvisação sobre standards.


Nem sempre grandes músicos de rock, pop ou MPB – autores de canções incríveis, de clássicos da música popular – sabem fazer músicas instrumentais interessantes. Em muitos casos, esse tipo de "fusion” – ao contrário do que vem do jazz ou de músicos com formação erudita – ressente-se da ausência de letra.


É muito diferente fazer um solo de guitarra em meio a uma canção que “fala” algo, que conta uma história, que tem um refrão, ou segurar toda a estrutura da música apenas com a linguagem instrumental. Cada área tem seus especialistas, compositores e interpretes que dominam as vicissitudes da linguagem em questão.


De novo voltamos à noção do “todo”; não podemos analisar um conhecido solo de guitarra sem considerarmos que ele faz parte de uma canção, e que essa canção é a somatória de título, tema, letra, melodia, harmonia, arranjo e interpretação.


Fonte: Guitar Class nº 13 por Sidnei Molina.

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